Desde
a publicação, em 1963, do clássico livro de G. Almond e S. Verba, The Civic
Culture: Political Attitudes and Democracy in Five Nations, que
reconhecidamente renovou a ciência política da época e inaugurou uma linha de
investigação até então desprezada pelos estudos relativos à vida política das
sociedades, o conceito de cultura
política tornou-se a expressão mais difundida para indicar que se
deveria estudar mais detidamente algumas dimensões da vida que, de forma mais
profunda, determinam as atitudes políticas de pessoas, grupos sociais e mesmo
coletividades inteiras.
A
partir dessa construção conceitual, a atenção de pesquisadores e pensadores da
ciência política pôde se desviar um pouco dos objetos mais tradicionais da
prática e do pensamento político para voltar-se para as dimensões que afetam o
conjunto de atitudes, crenças, valores e normas, mais ou menos compartilhadas,
na vida política de uma sociedade. Com a elaboração do conceito de cultura
política, os fenômenos políticos puderam ser trabalhados por meio de análises
mais sistemáticas que tinham como objeto as infindáveis maneiras de como as
pessoas se reportam à dimensão política da vida social. Não há como objetar que
houve, a partir de então, um inegável avanço em relação às pautas de
conhecimento da vida política das sociedades humanas, agregando uma inestimável
cota de valor às formulações mais elaboradas dos pensadores clássicos da
política.
O
êxito inicial vivido pelo conceito de cultura política nas ciências humanas e
sociais se prende efetivamente ao fato de que, a partir dele, se passou a dar
importância à investigação de aspectos da vida política que eram pouco
estudados ou mesmo negligenciados. A sua adoção revelou que, de fato, estudar a
vida política não era apenas investigar programas governamentais ou ações
governativas. Também não era estudar tão somente as nuances da vida partidária
ou se deter na investigação dos choques e entrechoques que se processavam nos
parlamentos ou nas composições e recomposições dos poderes executivos dos
Estados que, de resto, se sucediam na vida ordinária de qualquer país, e assim
por diante. Constatou-se enfim que seria importante saber se as pessoas
conhecem e o que conhecem da vida política da própria sociedade em que vivem e
como se relacionam, participam ou reagem diante daquilo que conhecem ou passam
a conhecer. Em outras palavras, qual o conhecimento que têm das instituições,
das tradições e das linguagens que são utilizadas na vida política; se
reconhecem, participam, aderem ou rejeitam as forças, grupos e correntes
políticas, com as identidades e os símbolos que as conformam. Da mesma forma,
seria preciso também entender qual a relação predominante que os indivíduos de
uma coletividade têm com noções muito importantes para a vida política como são
aquelas relativas aos direitos e deveres dos cidadãos, o que envolve, dentre
outras coisas, as obrigações quanto à aceitação das decisões institucionais,
especialmente aquelas tomadas pela maioria, bem como a aceitação ou o rechaço à
utilização de formas violentas de ação política. Seria necessário pensar também
nas tendências psicossociais que, embora difusas, deveriam ser levadas em conta
em toda a análise que se queira fazer da atividade ou dos fenômenos políticos.
Seria preciso investigar, em suma, como uma determinada população se mostra
diante das práticas da política, observando o seu sentido de confiança, adesão
e tolerância para com os governantes e/ou as correntes políticas. Isso daria
uma visão abrangente o suficiente para verificar determinados sentimentos
diante da política que seriam mais ou menos generalizados, como os da
indiferença, da rigidez, do dogmatismo ou mesmo do cinismo. Enfim, a formulação
do conceito de cultura política foi, de fato, um mergulho nas determinações
profundas da política, tanto do ponto de vista teórico quanto prático. Visando
organizar cientificamente esse campo do conhecimento que havia alargado
sobremaneira o conhecimento da vida política, seus formuladores mais
expressivos fizeram questão de chamar a atenção para o aspecto normativo dos
comportamentos políticos em uma determinada sociedade. Em função disso, a
identificação do conceito de cultura política com uma concepção behaviorista da
sociedade, de matriz comportamental-funcionalista, não é, assim, desprovida de
razão.
Após
um breve êxito inicial, relativamente circunscrito à esfera da ciência
política, o conceito de cultura política sofreu pesadas críticas e foi colocado
de lado, passando depois disso por um longo período de ostracismo. Naquele
contexto inicial de difusão do conceito (década de 1960), as objeções mais
severas a ele reportavam-se ao seu caráter fortemente ideológico que vinculava
determinados estágios da modernização das sociedades ocidentais a etapas do
desenvolvimento político das mesmas e, nelas, o estabelecimento de determinados
valores vinculados às práticas da democracia liberal como norteadores das
condutas e motivações que deveriam marcar a vida política. Era o momento em que,
no pós-guerra, se generalizava no Ocidente europeu o processo de reconstrução
dos sistemas políticos democráticos que iriam marcar a segunda metade do século
XX. A defesa do ordenamento liberal, frente aos avanços que haviam sido
conquistados pelos comunistas, com a expansão da URSS em direção ao leste da
Europa, estimulou uma postura refratária daqueles pensadores e pesquisadores da
ciência política que então haviam adotado o conceito de cultura política. De
fato, no início da década de 1960,
a preocupação fundamental de Almond e Verba foi a de
verificar como a cultura cívica, isto é, a cultura política democrática se
conformava ou não como um modelo de comportamento nas recém instauradas
democracias ocidentais. Para esses autores, o que se deveria compreender era,
sobretudo, o grau e o ritmo de assimilação dessa cultura cívica especialmente
no seio das sociedades que se modernizavam no contexto do pós-guerra e, por
essa razão, os estudos com base no conceito de cultura política procuraram se
distanciar da problemática das mudanças e mesmo dos conflitos, fixando-se numa
espécie de obsessão pela ordem e pelo consenso. Esse conservadorismo ideológico
acabou sendo tratado por muitos analistas posteriores como o chamado “passado
obscuro” do conceito de cultura política.
Em
termos analíticos, a grande rejeição ao conceito de cultura política esteve
baseada na crítica em relação ao alcance explicativo que ele postulou,
concebido originalmente como uma variável independente na compreensão dos
fenômenos políticos. Foi ficando cada vez mais claro que o conceito havia sido
projetado dispensando a avaliação de que todos os aspectos da vida política que
ele mobilizava não eram perenes, mas sim históricos e que, naturalmente,
poderiam mudar conforme cada momento ou contexto histórico. Além disso, como
dissemos, o conceito foi marcado por uma forte ideologização justificadora da
superioridade dos valores cívicos fundados na cultura liberal-democrática de
matriz anglo-saxônica. Assim, na avaliação de muitos cientistas políticos que
adotaram o conceito, a configuração de uma cultura cívica a partir daquela
matriz seria determinante para o desenvolvimento e a estabilidade dos sistemas
políticos democráticos; a sua ausência seria previamente entendida como uma das
razões que promoviam as recorrentes crises em sistemas políticos considerados
pouco sólidos ou consolidados.
A
essa crítica acima, pode-se agregar uma outra ainda mais contundente. De acordo
com os críticos mais recentes do conceito de cultura política, a estreita vinculação
do conceito às teorias da modernização estabelecia também uma leitura por assim
dizer “naturalizada” da esfera pública. Esta, por sua vez, estaria fundamentada
numa compreensão da sociedade capitalista nos termos de uma dicotomia existente
entre a dimensão público/estatal, de um lado, e a dimensão privado/mercado, de
outro, deixando muito pouco ou quase nada para que o substrato cultural e os
fundamentos propriamente políticos da sociedade pudessem se expressar na
determinação do conceito de cultura política. Seus fundamentos seriam, como
afirma a socióloga norte-americana Margaret R. Sommers (1996/97), mais sociais
do que propriamente políticos ou culturais. Esse enquadramento acabou por
estabelecer efetivamente um perfil rígido ao conceito, expondo simultaneamente
sua amplitude e sua estreiteza, sua força e sua debilidade, especialmente como
um ponto de referência para pesquisas de natureza empírica quer na Ciência
Política, na Sociologia ou na História.
Entretanto,
os processos políticos extraordinariamente novos que ocorreram a partir da
década de oitenta, nos quais o tema da democratização avançou pelos quatro
cantos do mundo, acabaram por dar um novo viço ao conceito. Democratização em
várias esferas da vida, participação ampliada e difusa, associativismo,
assunção do mundo do interesse, cidadania ativa, subjetivação, privatização da
vida cotidiana, declínio da centralidade dos partidos políticos e do papel dos
Estados Nacionais, enfim, todos os impulsos, limites e entraves ao
estabelecimento de uma cultura cívica que se fazem presentes na sociedade em
que vivemos são aspectos e dimensões que tornaram mais complexo o entendimento
da vida política, sem que com isso perdessem importância, na investigação e na
análise, as estruturas de representação e as mecânicas operativas dos sistemas
políticos nas democracias consolidadas ou mesmo naquelas que recém se organizaram
depois de situações autoritárias impostas em décadas anteriores. De qualquer
maneira, alguns autores, no final da década de oitenta, como R. Inglehart
(1988), chegaram a qualificar de “renascimento” aquela formidável retomada do
conceito de cultura política que, mesmo depois da virada do milênio, parece dar
mostras de ter retornado para ficar.
Analiticamente,
o chamado “renascimento” do conceito se verificou a partir do momento em que se
passou a considerá-lo como um conceito capaz de atribuir sentido e coerência a
determinados dados elaborados a partir de uma investigação, invertendo assim a
sua construção epistemológica. Nesse caso, a cultura política apareceria como
um marco ou limite explicativo das opções disponíveis ao alcance dos atores
políticos, possibilitando que se pudesse pensar então as mudanças e
permanências a partir de uma perspectiva histórica. E, se a cultura política muda,
seria possível interagir num contexto de mudança cultural nos termos de uma
política cultural propositiva, mesmo em conjunturas bastante limitadas
temporalmente. Em outras palavras e como conseqüência direta desse novo
tratamento, a cultura política poderia ser também abordada na perspectiva das
políticas culturais, uma vez que envolveria as dimensões acionárias dos
protagonistas da política, entendidos em seu sentido mais amplo, com seus
repertórios, suas linguagens políticas, suas simbologias, suas tradições, etc..
Ainda assim, a perspectiva
estabelecida acima manteve a orientação dentro do circuito construtivo do
conceito, embora se tenha garantido a ele um lugar distinto na investigação que,
ao invés de se reportar à realidade para nomear o que conhecemos de antemão -
ou seja, os atributos de uma cultura cívica fundada no paradigma anglo-saxão da
cidadania -, passa a ser um fator que nos permite explicar novas dimensões da
realidade, ainda desconhecidas e seguramente ainda não apreendidas. Nessa reorientação,
o conceito perde a sua rígida axiologia, ganhando flexibilidade e
operacionalidade. Não foi sem razão que, quase três décadas depois da sua
formulação original, o mesmo Gabriel A. Almond (1990), um dos seus criadores,
procurou reformulá-lo, de maneira sintética, afirmando que cultura política
“em primeiro lugar, consiste em um feixe de orientações
políticas de uma comunidade nacional ou subnacional; em segundo lugar, tem
componentes cognitivos, afetivos e valorativos que incluem tanto os conhecimentos
e crenças sobre a realidade política quanto os sentimentos políticos e os
compromissos com valores políticos; em terceiro lugar, o conteúdo da cultura
política é o resultado da socialização primária, da educação, da exposição aos media
e das experiências adultas em relação às ações governamentais, sociais e
econômicas; e, em quarto lugar, a cultura política afeta a atuação
governamental e a estrutura política, condicionando-as, ainda que não as
determinando, porque sua relação causal flui em ambas direções”(p.144).
Como dissemos, a reviravolta se
processou a partir do reconhecimento dos limites do conceito de cultura
política na forma original como ele havia sido concebido. A sua retomada não se
deu, portanto, sem que tenham sido propostas muitas alterações para que o
conceito pudesse ter aplicação e eficácia. Muitos analistas passaram a recusar
o uso do conceito no singular, advogando por uma formulação mais ampla e
abrangente: preferiram falar de “culturas políticas” no plural. Da mesma forma,
passou-se a admitir a plasticidade da cultura política, tanto do ponto de vista
da sua mudança ao longo do tempo como também a partir da compreensão de que a
cultura política não é algo homogêneo, não apresenta um significado unívoco
para todos os indivíduos, grupos sociais e comunidades nacionais. A partir de
ambas perspectivas, poderíamos falar, por exemplo, de culturas políticas breves
ou longevas; poderíamos nos referir a culturas políticas afirmativas ou de
rechaço; de culturas políticas que foram capazes de gerar movimentos e, ao
inverso, daquelas que nasceram a partir de movimentos político-sociais.
Outro elemento fundamental que se
deve registrar nesse painel que estamos compondo a respeito das mudanças que se
processaram no tratamento dado ao conceito de cultura política está relacionado
com as fontes utilizadas para se buscar compreender uma cultura política.
Passou-se a se enfatizar menos as premissas do sourvey, isto é, as
pesquisas de opinião, para centrar a atenção no modo pelo qual os atores
sociais produzem suas opiniões e, a partir das múltiplas expressões por eles
produzidas, realizar a análise dos textos e das narrativas ali contidas. O
pressuposto é que se deve buscar apanhar efetivamente a diversidade de
universos políticos e observar como os grupos sociais se constituem como atores
políticos a partir da compreensão que passam a construir do mundo da política,
do lugar que conquistam nesse mundo, das interpretações que elaboram sobre ele
e, por fim, das ações que promovem a partir da conquista ou da reelaboração da
sua inserção cidadã.
Compreendido, portanto, de um ponto
de vista diverso daquele que marcou a origem do conceito – como afirmamos
acima, notadamente comportamental-funcionalista –, o paradigma da cultura
política tem sido reconhecido como um excelente referencial na investigação dos
fenômenos políticos porque o conceito tanto demonstra ser ainda uma excelente
ferramenta de análise para a compreensão dos fundamentos e das transformações
dos sistemas políticos quanto revela alta produtividade na geração de temas,
problemas e questões a serem investigados.
Referências Bibliográficas
ALMOND, G. A. & VERBA, S. The
Civic Culture: Political Attitudes and Democracy in Five Nations. Princeton University Press, Princeton,
1963.
ALMOND, G. A. A Discipline Divided. Schools
and Sects in Political Science, Sage:London, 1990.
INGLEHART,
R. “The Renaissance of Political Culture” In American Political Science Review, v. 82, n.4, 1988, p. 1203-1230.
SOMERS,
Margaret R., “Qué hay de político o de cultural en la cultura política y en la
esfera pública? Hacia una sociologia histórica de la formación de conceptos”.
In Zona Abierta, Madrid, 77/78,
1996/97, p.31-94.