quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

UMA APROXIMAÇÃO INTRODUTÓRIA AO UNIVERSO DA CULTURA POLÍTICA, Alberto Aggio

Desde a publicação, em 1963, do clássico livro de G. Almond e S. Verba, The Civic Culture: Political Attitudes and Democracy in Five Nations, que reconhecidamente renovou a ciência política da época e inaugurou uma linha de investigação até então desprezada pelos estudos relativos à vida política das sociedades, o conceito de cultura política tornou-se a expressão mais difundida para indicar que se deveria estudar mais detidamente algumas dimensões da vida que, de forma mais profunda, determinam as atitudes políticas de pessoas, grupos sociais e mesmo coletividades inteiras.
A partir dessa construção conceitual, a atenção de pesquisadores e pensadores da ciência política pôde se desviar um pouco dos objetos mais tradicionais da prática e do pensamento político para voltar-se para as dimensões que afetam o conjunto de atitudes, crenças, valores e normas, mais ou menos compartilhadas, na vida política de uma sociedade. Com a elaboração do conceito de cultura política, os fenômenos políticos puderam ser trabalhados por meio de análises mais sistemáticas que tinham como objeto as infindáveis maneiras de como as pessoas se reportam à dimensão política da vida social. Não há como objetar que houve, a partir de então, um inegável avanço em relação às pautas de conhecimento da vida política das sociedades humanas, agregando uma inestimável cota de valor às formulações mais elaboradas dos pensadores clássicos da política.
O êxito inicial vivido pelo conceito de cultura política nas ciências humanas e sociais se prende efetivamente ao fato de que, a partir dele, se passou a dar importância à investigação de aspectos da vida política que eram pouco estudados ou mesmo negligenciados. A sua adoção revelou que, de fato, estudar a vida política não era apenas investigar programas governamentais ou ações governativas. Também não era estudar tão somente as nuances da vida partidária ou se deter na investigação dos choques e entrechoques que se processavam nos parlamentos ou nas composições e recomposições dos poderes executivos dos Estados que, de resto, se sucediam na vida ordinária de qualquer país, e assim por diante. Constatou-se enfim que seria importante saber se as pessoas conhecem e o que conhecem da vida política da própria sociedade em que vivem e como se relacionam, participam ou reagem diante daquilo que conhecem ou passam a conhecer. Em outras palavras, qual o conhecimento que têm das instituições, das tradições e das linguagens que são utilizadas na vida política; se reconhecem, participam, aderem ou rejeitam as forças, grupos e correntes políticas, com as identidades e os símbolos que as conformam. Da mesma forma, seria preciso também entender qual a relação predominante que os indivíduos de uma coletividade têm com noções muito importantes para a vida política como são aquelas relativas aos direitos e deveres dos cidadãos, o que envolve, dentre outras coisas, as obrigações quanto à aceitação das decisões institucionais, especialmente aquelas tomadas pela maioria, bem como a aceitação ou o rechaço à utilização de formas violentas de ação política. Seria necessário pensar também nas tendências psicossociais que, embora difusas, deveriam ser levadas em conta em toda a análise que se queira fazer da atividade ou dos fenômenos políticos. Seria preciso investigar, em suma, como uma determinada população se mostra diante das práticas da política, observando o seu sentido de confiança, adesão e tolerância para com os governantes e/ou as correntes políticas. Isso daria uma visão abrangente o suficiente para verificar determinados sentimentos diante da política que seriam mais ou menos generalizados, como os da indiferença, da rigidez, do dogmatismo ou mesmo do cinismo. Enfim, a formulação do conceito de cultura política foi, de fato, um mergulho nas determinações profundas da política, tanto do ponto de vista teórico quanto prático. Visando organizar cientificamente esse campo do conhecimento que havia alargado sobremaneira o conhecimento da vida política, seus formuladores mais expressivos fizeram questão de chamar a atenção para o aspecto normativo dos comportamentos políticos em uma determinada sociedade. Em função disso, a identificação do conceito de cultura política com uma concepção behaviorista da sociedade, de matriz comportamental-funcionalista, não é, assim, desprovida de razão.
Após um breve êxito inicial, relativamente circunscrito à esfera da ciência política, o conceito de cultura política sofreu pesadas críticas e foi colocado de lado, passando depois disso por um longo período de ostracismo. Naquele contexto inicial de difusão do conceito (década de 1960), as objeções mais severas a ele reportavam-se ao seu caráter fortemente ideológico que vinculava determinados estágios da modernização das sociedades ocidentais a etapas do desenvolvimento político das mesmas e, nelas, o estabelecimento de determinados valores vinculados às práticas da democracia liberal como norteadores das condutas e motivações que deveriam marcar a vida política. Era o momento em que, no pós-guerra, se generalizava no Ocidente europeu o processo de reconstrução dos sistemas políticos democráticos que iriam marcar a segunda metade do século XX. A defesa do ordenamento liberal, frente aos avanços que haviam sido conquistados pelos comunistas, com a expansão da URSS em direção ao leste da Europa, estimulou uma postura refratária daqueles pensadores e pesquisadores da ciência política que então haviam adotado o conceito de cultura política. De fato, no início da década de 1960, a preocupação fundamental de Almond e Verba foi a de verificar como a cultura cívica, isto é, a cultura política democrática se conformava ou não como um modelo de comportamento nas recém instauradas democracias ocidentais. Para esses autores, o que se deveria compreender era, sobretudo, o grau e o ritmo de assimilação dessa cultura cívica especialmente no seio das sociedades que se modernizavam no contexto do pós-guerra e, por essa razão, os estudos com base no conceito de cultura política procuraram se distanciar da problemática das mudanças e mesmo dos conflitos, fixando-se numa espécie de obsessão pela ordem e pelo consenso. Esse conservadorismo ideológico acabou sendo tratado por muitos analistas posteriores como o chamado “passado obscuro” do conceito de cultura política.
Em termos analíticos, a grande rejeição ao conceito de cultura política esteve baseada na crítica em relação ao alcance explicativo que ele postulou, concebido originalmente como uma variável independente na compreensão dos fenômenos políticos. Foi ficando cada vez mais claro que o conceito havia sido projetado dispensando a avaliação de que todos os aspectos da vida política que ele mobilizava não eram perenes, mas sim históricos e que, naturalmente, poderiam mudar conforme cada momento ou contexto histórico. Além disso, como dissemos, o conceito foi marcado por uma forte ideologização justificadora da superioridade dos valores cívicos fundados na cultura liberal-democrática de matriz anglo-saxônica. Assim, na avaliação de muitos cientistas políticos que adotaram o conceito, a configuração de uma cultura cívica a partir daquela matriz seria determinante para o desenvolvimento e a estabilidade dos sistemas políticos democráticos; a sua ausência seria previamente entendida como uma das razões que promoviam as recorrentes crises em sistemas políticos considerados pouco sólidos ou consolidados.
A essa crítica acima, pode-se agregar uma outra ainda mais contundente. De acordo com os críticos mais recentes do conceito de cultura política, a estreita vinculação do conceito às teorias da modernização estabelecia também uma leitura por assim dizer “naturalizada” da esfera pública. Esta, por sua vez, estaria fundamentada numa compreensão da sociedade capitalista nos termos de uma dicotomia existente entre a dimensão público/estatal, de um lado, e a dimensão privado/mercado, de outro, deixando muito pouco ou quase nada para que o substrato cultural e os fundamentos propriamente políticos da sociedade pudessem se expressar na determinação do conceito de cultura política. Seus fundamentos seriam, como afirma a socióloga norte-americana Margaret R. Sommers (1996/97), mais sociais do que propriamente políticos ou culturais. Esse enquadramento acabou por estabelecer efetivamente um perfil rígido ao conceito, expondo simultaneamente sua amplitude e sua estreiteza, sua força e sua debilidade, especialmente como um ponto de referência para pesquisas de natureza empírica quer na Ciência Política, na Sociologia ou na História.
Entretanto, os processos políticos extraordinariamente novos que ocorreram a partir da década de oitenta, nos quais o tema da democratização avançou pelos quatro cantos do mundo, acabaram por dar um novo viço ao conceito. Democratização em várias esferas da vida, participação ampliada e difusa, associativismo, assunção do mundo do interesse, cidadania ativa, subjetivação, privatização da vida cotidiana, declínio da centralidade dos partidos políticos e do papel dos Estados Nacionais, enfim, todos os impulsos, limites e entraves ao estabelecimento de uma cultura cívica que se fazem presentes na sociedade em que vivemos são aspectos e dimensões que tornaram mais complexo o entendimento da vida política, sem que com isso perdessem importância, na investigação e na análise, as estruturas de representação e as mecânicas operativas dos sistemas políticos nas democracias consolidadas ou mesmo naquelas que recém se organizaram depois de situações autoritárias impostas em décadas anteriores. De qualquer maneira, alguns autores, no final da década de oitenta, como R. Inglehart (1988), chegaram a qualificar de “renascimento” aquela formidável retomada do conceito de cultura política que, mesmo depois da virada do milênio, parece dar mostras de ter retornado para ficar.
Analiticamente, o chamado “renascimento” do conceito se verificou a partir do momento em que se passou a considerá-lo como um conceito capaz de atribuir sentido e coerência a determinados dados elaborados a partir de uma investigação, invertendo assim a sua construção epistemológica. Nesse caso, a cultura política apareceria como um marco ou limite explicativo das opções disponíveis ao alcance dos atores políticos, possibilitando que se pudesse pensar então as mudanças e permanências a partir de uma perspectiva histórica. E, se a cultura política muda, seria possível interagir num contexto de mudança cultural nos termos de uma política cultural propositiva, mesmo em conjunturas bastante limitadas temporalmente. Em outras palavras e como conseqüência direta desse novo tratamento, a cultura política poderia ser também abordada na perspectiva das políticas culturais, uma vez que envolveria as dimensões acionárias dos protagonistas da política, entendidos em seu sentido mais amplo, com seus repertórios, suas linguagens políticas, suas simbologias, suas tradições, etc..
Ainda assim, a perspectiva estabelecida acima manteve a orientação dentro do circuito construtivo do conceito, embora se tenha garantido a ele um lugar distinto na investigação que, ao invés de se reportar à realidade para nomear o que conhecemos de antemão - ou seja, os atributos de uma cultura cívica fundada no paradigma anglo-saxão da cidadania -, passa a ser um fator que nos permite explicar novas dimensões da realidade, ainda desconhecidas e seguramente ainda não apreendidas. Nessa reorientação, o conceito perde a sua rígida axiologia, ganhando flexibilidade e operacionalidade. Não foi sem razão que, quase três décadas depois da sua formulação original, o mesmo Gabriel A. Almond (1990), um dos seus criadores, procurou reformulá-lo, de maneira sintética, afirmando que cultura política
“em primeiro lugar, consiste em um feixe de orientações políticas de uma comunidade nacional ou subnacional; em segundo lugar, tem componentes cognitivos, afetivos e valorativos que incluem tanto os conhecimentos e crenças sobre a realidade política quanto os sentimentos políticos e os compromissos com valores políticos; em terceiro lugar, o conteúdo da cultura política é o resultado da socialização primária, da educação, da exposição aos media e das experiências adultas em relação às ações governamentais, sociais e econômicas; e, em quarto lugar, a cultura política afeta a atuação governamental e a estrutura política, condicionando-as, ainda que não as determinando, porque sua relação causal flui em ambas direções”(p.144).
Como dissemos, a reviravolta se processou a partir do reconhecimento dos limites do conceito de cultura política na forma original como ele havia sido concebido. A sua retomada não se deu, portanto, sem que tenham sido propostas muitas alterações para que o conceito pudesse ter aplicação e eficácia. Muitos analistas passaram a recusar o uso do conceito no singular, advogando por uma formulação mais ampla e abrangente: preferiram falar de “culturas políticas” no plural. Da mesma forma, passou-se a admitir a plasticidade da cultura política, tanto do ponto de vista da sua mudança ao longo do tempo como também a partir da compreensão de que a cultura política não é algo homogêneo, não apresenta um significado unívoco para todos os indivíduos, grupos sociais e comunidades nacionais. A partir de ambas perspectivas, poderíamos falar, por exemplo, de culturas políticas breves ou longevas; poderíamos nos referir a culturas políticas afirmativas ou de rechaço; de culturas políticas que foram capazes de gerar movimentos e, ao inverso, daquelas que nasceram a partir de movimentos político-sociais.
Outro elemento fundamental que se deve registrar nesse painel que estamos compondo a respeito das mudanças que se processaram no tratamento dado ao conceito de cultura política está relacionado com as fontes utilizadas para se buscar compreender uma cultura política. Passou-se a se enfatizar menos as premissas do sourvey, isto é, as pesquisas de opinião, para centrar a atenção no modo pelo qual os atores sociais produzem suas opiniões e, a partir das múltiplas expressões por eles produzidas, realizar a análise dos textos e das narrativas ali contidas. O pressuposto é que se deve buscar apanhar efetivamente a diversidade de universos políticos e observar como os grupos sociais se constituem como atores políticos a partir da compreensão que passam a construir do mundo da política, do lugar que conquistam nesse mundo, das interpretações que elaboram sobre ele e, por fim, das ações que promovem a partir da conquista ou da reelaboração da sua inserção cidadã.
Compreendido, portanto, de um ponto de vista diverso daquele que marcou a origem do conceito – como afirmamos acima, notadamente comportamental-funcionalista –, o paradigma da cultura política tem sido reconhecido como um excelente referencial na investigação dos fenômenos políticos porque o conceito tanto demonstra ser ainda uma excelente ferramenta de análise para a compreensão dos fundamentos e das transformações dos sistemas políticos quanto revela alta produtividade na geração de temas, problemas e questões a serem investigados.

Referências Bibliográficas
ALMOND, G. A. & VERBA, S. The Civic Culture: Political Attitudes and Democracy in Five Nations. Princeton University Press, Princeton, 1963.
ALMOND, G. A. A Discipline Divided. Schools and Sects in Political Science, Sage:London, 1990.
INGLEHART, R. “The Renaissance of Political Culture” In American Political Science Review, v. 82, n.4, 1988, p. 1203-1230.
SOMERS, Margaret R., “Qué hay de político o de cultural en la cultura política y en la esfera pública? Hacia una sociologia histórica de la formación de conceptos”. In Zona Abierta, Madrid, 77/78, 1996/97, p.31-94.